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ATO II,Cena II

William Shakespeare,Sonho de uma noite de verão,ATO II,Cena II

Outra parte do bosque. Entra Titânia, com seu séqüito.

TITÂNIA - Vamos à ronda! Urna canção de fadas! E, após um terço de minuto, fora! Umas, para matar
nos botões róseos as lagartas nocivas; outras, para fazer guerra aos morcegos e tirar-lhes as asas, porque
couro não nos falte para os casacos dos pequenos elfos; espantareis vós outras as corujas que piam toda a
noite e o nosso bando caprichoso contemplam espantadas. Cantai até que eu durma e retirai-vos a
trabalhar, deixando-me em repouso.
(As fadas cantam.)

I

Serpes manchadas, feios ouriços sapos nojentos, fugi asinha; que nossas vozes vos dêem sumiço
enquanto dorme nossa rainha. Canta conosco, em porfia, rouxinol, a melodia: lula-lula-lulabia,
lula-lula-lulabia. Que nossa orquestra de nossa mestra afaste qualquer magia. Boa noite com lulabia.

II

Aranhas feias não fiqueis perto, correi com vossas patas peludas; fugi, besouros, para o deserto,
deixai-nos quietas nas matas mudas. Canta conosco, em porfia, rouxinol, a melodia: lula.lula-lulabia,
lula-iula-lulabia. Que nossa orquestra de nossa mestra afaste qualquer magia. Boa noite com lulabia.

FADAS - Saiamos com bem cautela; fique uma de sentinela.
(Saem as fadas; Titânia dorme.)
(Entra Oberon e espreme a planta nas pálpebras de Titânia.)

OBERON - O primeiro que enxergares quando daqui despertares, de gesto e formas alvares, amarás de
coração, seja urso, gato ou leão. Farás dele o teu querido; terás o peito rendido como às setas de Cupido.
(Sai.)
(Entram Lisandro e Hérmia.)

LISANDRO - De tanto andar, querida, estás cansada. Para ser franco, erramos o caminho. Hérmia,
repousarás, se isso te agrada; o escuro poderá te ser daninho.

HÉRMIA - Um leito, então, ajeita em qualquer ponto, que neste banco o meu já se acha pronto.

LISANDRO - De um punhado de relva, travesseiro poderemos fazer. O verdadeiro amor nunca divide:
uma lealdade, dois corações num leito, sem maldade.

HÉRMIA - Não, Lisandro; nem mesmo num deserto convirá que de mim tu durmas perto.

LISANDRO - O querida, ofender-te não queria com o que propus. É fruto da alegria quanto avancei. Só
disse que no peito me bate um coração, a ti sujeito; e que eles, juntos, formam neste instante um coração
apenas, muito amante. Se nossas almas o amor forte as liga, a vivermos unidos nos obriga. Em teu leito,
portanto, me consente, porque contigo sempre estou presente.

HÉRMIA - Lisandro se mostrou muito eloqüente. Padecerá demais minha altivez, se eu disser que ele
fala com dobrez. No entanto, amigo, prova o teu carinho. Não falo em tom zangado ou de escarninho.
Por cortesia e amor de mim te afasta. Fala eloqüente, apenas, não nos basta; mas neste instante, de o
dizer não coro, exige o imperativo do decoro que entre um rapaz virtuoso e sua amada barreira se
interponha adiamantada. Por isso, adeus; que dure quanto a vida a lealdade de tua alma estremecida.

LISANDRO - Amém; eis como encerro essa oração. Sem teu amor, me pare o coração.
(Afasta-se.)
Eis meu leito; que o sono te acalente.

HÉRMIA - E te conceda um sonho sorridente.
(Dormem.)
(Entra Puck.)

PUCK - Todo o bosque hei percorrido, sem que ateniense garrido pudesse achar, porque o amor
transmudasse com esta flor. Noite e silêncio. Que vejo? Traje ateniense a varejo? Eis o homem de que
meu mestre falou, de peito silvestre, que de todo não se agrada da ateniense apaixonada. Coitadinha! Está
tão longe deste bruto e frio monge!
(Espreme a flor nas pálpebras de Lisandro.)
Ora nos olhos, maluco, desta flor te deito o suco porque, com sua magia, não te consinta, de dia nem de
noite, o meigo sono desses olhos ficar dono. Acorda logo; já vou, porque Oberon me chamou.
(Sai.)
(Entram Demétrio e Helena, a correr.)

HELENA - para! Ainda mesmo que me dês a morte.

DEMÉTRIO - Fora! Não me persigas desta sorte.

HELENA - Deixas-me neste escuro e vais sozinho?

DEMÉTRIO - Para trás! Não me cortes o caminho.
(Sai Demétrio)

HELENA - Esta caça amorosa me fez lassa; aumento com os pedidos a desgraça. Hérmia é feliz, esteja
onde estiver; olhos assim não os possui mulher. Como pode ter olhos tão brilhantes? Não de chorar; que
a todos os instantes, chorando como choro, eu deveria ter nos olhos mais luz que o claro dia. Sim, é
certo: sou feia como um urso. Para feiúra tal não há recurso. As próprias feras que me vêem, de medo
afundam mais e mais pelo arvoredo. Que muito, pois, que, em frente de tal monstro, fuja Demétrio,

quando amor demonstro? Qual infernal e enganador espelho me disse que ao de Hérmia era semelho meu
deformado rosto? Mas, que vejo? Lisandro aqui? Não pode ser gracejo. Está dormindo ou morto? Nem
ferida percebo, nem qualquer arma homicida. Lisandro, despertai! Estais doente?

LISANDRO (despertando): Ó transparente Helena! Incontinenti me atirarei por ti no próprio fogo. A
natureza mostra, neste afôgo, sua arte sublimada, permitindo que através desse peito casto e lindo teu
coração eu veja. Dize-me: onde Demétrio, aquele vil, ora se esconde? Oh, que nome vilíssimo! De nada
vale, senão para cortá-lo a espada.

HELENA - Não, bom Lisandro; não digais tal coisa. Somente porque a Hérmia amar ele ousa? Ela vos
tem amor; ficai contente.

LISANDRO - Com o amor de Hérmia? Não, não sou demente. Como lastimo as horas que ao seu lado
passei, cheias de tédio, a meu mau grado! Amo a Helena; a tal Hérmia me era estorvo. Quem não troca
uma rola por um corvo? O homem pela razão é conduzido; e esta me deixa ao teu valor rendido.
Amadurece tudo em tempo certo. Eu era muito moço; ora liberto me acho da inexperiência e da ilusão.
Homem feito, dirige-me a razão, que em teus olhos um livro me oferece onde leio do amor a ardente
prece.

HELENA - Por que nasci para tamanha afronta? Que vos fiz? Essa fala me amedronta. Não basta, jovem,
nunca eu ter podido prender Demétrio ao meu coração fido, para que com tão grande inconveniência
venhais zombar de minha insuficiência? Depõe contra vossa honra, sobremodo, a corte me fazerdes desse
modo. Passai bem, confessar ser-me-á forçoso que nunca vos julguei tão desgracioso. Porque um moço
despreza uma donzela, não se conclui que um outro abuse dela.
(Sai.)

LISANDRO - A Hérmia não percebeu. Dorme até o dia, que em mim não tem poder tua magia. Pois,
como a mais violenta indigestão nos vem dos doces que mais gratos são, e as heresias com maior fereza
odeia quem já delas se viu presa: tu, minha indigestão, minha heresia, serás por mim odiada noite e dia.
No amor vou revelar-me verdadeiro, sendo de Helena bela o cavaleiro
(Sai.)

HÉRMIA (despertando) - Lisandro, acode! Tira-me a serpente que no seio me causa dor pungente. Só
em ti, meu Lisandro, acho guarida; vê como o medo me deixou transida. Quis parecer-me que uma serpe
o peito me devorava, e tu tão satisfeito! Lisandro! Fala! Já te foste embora? Não me respondes? Fala sem
demora. Tremo de susto. Onde te ocultas? Onde? Por todos os amores me responde. Sinto que não te
encontras ao meu lado; pois vou te achar e dar remate ao fado.
(Sai.)