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CONTO DE INVERNO, ATO II, Cena III

O mesmo. Um quarto no palácio. Entram Leontes, Antígono, nobres e pessoas do séquito.

LEONTES - Repouso algum de dia nem de noite. É sinal de fraqueza suportarmos o mal dessa maneira;
só fraqueza. Se ao menos estivesse a causa extinta... parte da causa: a adúltera; que o biltre do rei se
encontra longe do meu braço, fora do alvo e mirada de meus planos, completamente impune. Mas não
posso passar o gancho nela. Se deixasse de existir, consumida pelas chamas, metade do repouso,
certamente, de novo alcançaria. Quem vem lá?

PRIMEIRO CRIADO - Meu soberano...

LEONTES - Como está o menino?

PRIMEIRO CRIADO - Dormiu a noite toda. É de esperar-se que se restabeça.

LEONTES - Para a sua nobreza contemplar! Tendo a desonra compreendido da mãe, começou logo a
estiolar-se, murchou, sentindo muito profundamente tudo o que passara. Aceitou a vergonha como
própria; perdeu toda a alegria, a fome, o sono, e entrou de definhar. Deixai-me só. Ide ver como passa
neste instante.
(Sai o Criado.)
Oh vergonha! tiremo-lo da idéia. O pensamento de querer vingar-me se vira contra mim. É poderoso por
demais, em si mesmo, além da ajuda dos parentes e aliados. Pois deixemo-lo, até que o tempo nisso me
auxilie. Por enquanto, a vingança a atinge, apenas. Zombam de mim Camilo e o Rei da Boêmia; brincam
com minha dor. Mas muito tempo não hão de rir, que hei de alcançá-los breve. Tampouco rirá ela,
porque a tenho bem presa agora.
(Entra Paulina, com uma criança nos braços.)

PRIMEIRO NOBRE - Não podeis entrar.

PAULINA - Ora, meus bons senhores, ajudai-me, que o podeis. Mais valor dais à tirânica cólera dele do
que à própria vida da rainha? Ela, uma alma tão graciosa, que mais pureza tem do que ele ciúme?

ANTÍGONO - É quanto basta.

SEGUNDO CRIADO - Toda a noite insone, senhora, ele passou, tendo dado ordem para que ninguém
viesse perturbá-lo.

PAULINA - Menos calor, meu bom senhor. Eu venho trazer-lhe sono, apenas. As pessoas como vós, que
se esgueiram perto dele como se fossem sombras, e suspiram quantas vezes sem causa ele se agita, é que
alimentam toda a sua insónia. Eu, palavras lhe trago, assim verazes como medicinais, tenções honestas
para purgá-lo desse humor nocivo, que o impede de dormir.

LEONTES - Quem faz barulho?

PAULINA - Não é barulho, meu senhor; apenas uma conversa necessária, acerca de alguns compadres
para Vossa Alteza.

LEONTES - Como! Levai daqui essa audaciosa! Antígono, eu te havia prevenido de que não deveria
essa mulher chegar perto de mim. Sabia que ela tentaria isso mesmo.

ANTÍGONO - Disse-lhe isso, meu senhor, e observei que ela incorria no desagrado vosso e meu, se
acaso tentasse visitar-vos.

LEONTES - Como! Falta-te energia? Não mandas então nela?

PAULINA - Para impedir de fazer mal, decerto. Mas nisto, a menos que vos siga o exemplo,
prendendo-me por presa da honra achar-me, ficai certo de que ele em mim não manda.

ANTÍGONO - Vós a ouvistes? Quando ela toma as rédeas nos dentes, disparar a deixo sempre. Nunca
tropeça.

PAULINA - Venho, meu bondoso soberano, pedir que me escuteis. Vossa leal serva eu sou, sou vossa
médica, conselheira obediente e dedicada. Mas para vossa cura não me atrevo a me insinuar, tal como o
fazem muitos daqui mesmo. Da parte venho, disse, de vossa boa esposa.

LEONTES - Boa esposa!

PAULINA - Boa esposa, milorde; boa esposa. Repito: boa esposa; e pelas armas isso mesmo provara, se
homem fosse, o pior dentre os presentes.

LEONTES - Expulsai-a daqui!

PAULINA - Quem não prezar os próprios olhos, de leve ora me toque. Por vontade sairei. Antes, porém,
darei remate à missão a que vim. A boa rainha - pois boa ela é - teve uma filha vossa. Ei-la! Para ela pede
a vossa bênção.
(Depõe a criança no berço.)

LEONTES - Fora daqui, virago feiticeira! Alcoviteira infame!

PAULINA - Não sou isso. Tão ignorante sou de tal ofício, quanto vós em me dardes esse título, e tão
honesta sou quanto vós, louco, o que, no estado em que se encontra o mundo, posso afiançar-vos, chega
até de sobra para a gente ser tida como honesta.

LEONTES - Traidores! Não a jogareis lá fora? Entregai-lhe a bastarda! (A Antígono.) Velho tonto, títere
das mulheres, que abandonas o poleiro por causa destes gritos! Levai daqui a bastarda e a entregai logo a
essa velha sem dentes. PAULINA - Desonradas as mãos te fiquem sempre, se tocares na princesa, depois
do termo baixo que ele falou.

LEONTES - Tem medo da mulher!

PAULINA - Quisera que da vossa vos temesseis, pois desse modo, com maior certeza, de vossos
chamaríeis vossos filhos.

LEONTES - Ninhada de traidores!

ANTÍGONO - Não sou traidor; por esta luz divina.

PAULINA - Nem eu, tampouco; nem ninguém, exceto, dos presentes, um só, que é ele mesmo, pois sua
honra sagrada, a da rainha, do filho esperançoso, desta criança, à calúnia entregou, cujos acúleos ferem
mais do que a espada. Ele recusa-se - e no caso presente é verdadeira maldição não podermos
constrangê-lo - a extirpar uma idéia que é tão podre quanto o carvalho e a pedra são sadios.

LEONTES - Uma ralheta de infindável língua, que bateu no marido e ora me atiça. Não é minha essa
criança; é de Políxenes; retirai-a daqui e, juntamente com a mãe, lançai-a ao fogo.

PAULINA - É vossa filha, sim. O antigo provérbio poderia ter hoje aplicação: "Tão parecida convosco,
que dá pena". Contemplai-a, senhores: muito embora seja a cópia por demais reduzida, o texto inteiro
reproduz o do pai. A boca, os olhos, o todo carrancudo, a testa, o riso, as covinhas das faces e do queixo,
o feitio exatíssimo dos dedos, das unhas, da mão toda... Ó Natureza, deusa bondosa, que fizeste, para
tanto ela ao genitor ser parecida? Se a alma também plasmares, o amarelo de entre as cores exclui, para
que um dia, como ele, a suspeitar ela não venha que não são do marido os próprios filhos.

LEONTES - Bruxa grosseira! E tu, sujeito à-toa! Merecias a forca por não teres poder para fazê-la ficar
quieta.

ANTÍGONO - Enforcai os maridos que não podem realizar essa proeza, e escassamente vos sobrará um
súdito.

LEONTES - De novo vos ordeno: tirai-a daqui logo!

PAULINA - O mais desnaturado e indigno esposo não faria pior.

LEONTES - Quisera-ver-te numa fogueira.

PAUUNA - Pouco me incomodo. Herético é quem lança fogo à pira, não quem nela se extingue. Não vos
chamo de tirano; porém o modo indigno por que tratais a esposa - sem poderdes acusá-la de nada, afora a
vossa própria imaginação tão mal parada - mostra certo sabor de tirania, deixando-vos ignóbil, mais do
que isso: vergonha para o mundo.

LEONTES - Pelo vosso penhor de vassalagem, retirai-a daqui, sem mais tardança. Se eu, de fato, fosse
tirano, ela estaria viva? Se tivesse certeza de que eu o era, não me viria agora dizer isso. Levai-a daqui
logo! PAULJNA - Por obséquio, não precisais puxar-me; irei sozinha. Tomai conta, senhor, de vossa
filha; é vossa. Possa Jove conceder-lhe melhor anjo da guarda. Para que essas mãos sobre mim?
Mostrando-vos zelosos a esse ponto com todas as loucuras que ele fizer, só lhe sereis nocivos. Deixai!
Deixai! Meus. Já nos partimos.
(Sai.)

LEONTES - Traidor, isso é obra tua. Espicaçaste contra mim tua esposa. Minha a filha! Levai-a daqui
logo! E se te mostras tão compassivo assim, carrega-a. Vamos! E que depressa as chamas a consumam.
Tu, justamente! Tu! Carrega-a logo! Antes de uma hora volta com a notícia de que foram cumpridas
minhas ordens. Mas bem testemunhado! Do contrário, hei de tirar-te a vida e o que mais tenhas. Se te
recusas, pretendendo contra minha cólera opor-te, dize logo, que com estas mãos farei saltar o cérebro
desta bastarda. Leva-a para o fogo, já que atiçaste contra mim tua esposa.

ANTIGONO - Não fiz tal, meu senhor. Estes fidalgos, meus nobres companheiros, se o quiserem, podem
justificar-me.

PRIMEIRO NOBRE - Sim, podemos, meu soberano; não tem culpa alguma da vinda da mulher.

LEONTES - Sois mentirosos, sem exceção de um só.

PRIMEIRO NOBRE - Vossa Grandeza poderia ter-nos em melhor conta. Sempre vos servimos
fielmente; fora justo que nesta hora reconhecêsseis isso. Suplicamo-vos de joelhos, como prêmio dos
serviços - passados e futuros - que esse intento vos apraza mudar. É horrível, tão sanguinário, para que
não tenha conseqüências nefastas. Ajoelhamo-nos todos a um tempo.

LEONTES - Sou pluma que se agita a qualquer vento? Terei de ver um dia essa bastarda vir ajoelhar-se
em minha frente, para dar-me o nome de pai? É preferível queimá-la agora, a ter de amaldiçoá-la. Pois
veja. Fique viva. Será o mesmo: não viverá.
(A Antígono)
Senhor, aproximai-vos. Já que mostrais tão grande empenho, ao lado dessa parteira, dona Margarida,
para salvar a vida da bastarda - pois é o que ela é; tão certo como achar-se grisalha minha barba - que
faríeis para salvar a vida desta coisa?

ANTÍGONO - Tudo o de que eu fosse capaz, milorde, e que a honra não condene. Ao menos isto:
empenharei o sangue que me resta, para a vida salvar desta inocente. Tudo o que for possível.

LEONTES - Vou mandar-te fazer algo possível. Jura agora por esta espada que hás de obedecer-me.

ANTÍGONO - Obedeço, senhor.

LEONTES - Toma bem nota, e cumpre o que eu mandar - estás ouvindo? - pois o não cumprimento de
uma parte qualquer das instruções, implica morte não para ti, apenas, para a tua mulher de língua solta, a
que perdoamos por esta vez. Ordeno-te, portanto, já que és nosso vassalo, de pegares esta bastarda e a
transportares para qualquer lugar deserto e bem distante, fora de nossas terras, aí deixando-a sem mais
piedade, entregue à sua própria proteção e à mercê do áspero clima. Acaso estranho a nossas mãos a
trouxe. Com justiça, pois, ora te encarrego - sob ameaça de morte e de torturas - de estranhamente
nalgum ponto a pores, onde o acaso a alimente ou a estruí-la venha. Vamos: leva-a daqui!

ANTÍGONO - Juro fazê-lo, embora a morte rápida lhe fosse caridade maior. Que algum espírito potente
ensine aos corvos e aos milhanos a te servirem de ama. Os próprios ursos e os lobos, dizem, da
ferocidade natural se despindo, já mostraram tais provas de piedade. Feliz sede, senhor, mais do que o
pede esta façanha. E que a bênção celeste te proteja, pobre coisinha condenada à morte.
(Sai, levando a criança.)

LEONTES - Não, não hei de criar filhos dos outros.
(Entra um criado.)

CRIADO - Se Vossa Alteza o permitir, há uma hora chegou o correio, novas nos trazendo da embaixada
que enviastes ao oráculo. Já voltaram de Delfo Dion e Cleômenes; pisaram terra e marcham para a corte.

PRIMEIRO NOBRE - Com permissão, senhor, mas essa pressa ultrapassa qualquer expectativa.

LEONTES - Vinte e três dias lhes durou a viagem. Tal rapidez é indício de que Apolo deseja que a
verdade logo surja. Convocai logo uma sessão, senhores, ante a qual possa aparecer a nossa muito desleal
esposa. Tendo sido de público acusada, é necessário que a sentença também seja solene. Ser-me-á o
coração peso angustioso enquanto ela viver. Deixai-me agora e refleti em tudo o que vos disse.
(Saem.)